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Foto do escritorJorge Quiros

Notas sobre o realismo; 6.1.24

Atualizado: 2 de abr.








NOTAS SOBRE O REALISMO; 6.1.24




... E porque, pois, sombrear e esfumar tudo? O que se observa hoje nos desenhos hiper-realistas é uma tentativa de simular uma foto, isto seja, de lograr um "realismo" fotogênico. Ora, porque um desenhista iria querer competir com as fotografias, se sua plástica material ( os efeitos de realismo promovidos pela matéria mesma do lápis) é algo mais raro e superior do que o mero registro fotográfico? Se há algo que a fotografia nunca irá capturar é a identidade de um traço.





Quando Michelangelo esculpia seu Moisés, procurava algo mais que as lisas formas do acabamento, e mesmo que sua conquista em fazer o duro mármore dobrar-se à lisura e à naturalidade da forma lapidada fosse algo próximo ao divino, ainda assim Michelangelo não os tinha por fim, seu fim está contido na lendária exclamassão ao ver seu Moisés realizado: "Pharla-te!"


Michelangelo buscava, pois, a vida, e a vida se expressa sempre cheia de realismo, sendo este último como que uma sensibilidade demonstrativa daquilo que está vivo.


Ora, as formas vigorosas de Rodin, feitas não em mármore, mas em argila, de modo que sua mão deixasse sobre esta argila as marcas do gesto do escultor, são tão vivas quanto as formas de Michelangelo, tal como realistas, por mais que a lisura de um fosse no outro uma potência inversa à glória do gesto.


Mas hoje vejo desenhistas buscarem a lisura da imagem como fim, sufocando o fim mesmo da vida sob o vício obcecado do esfumado.

Construções metódicas de um cânone geometrizado que mais se parece um desenho de engenharia, prendendo as visões do real sob rédeas do racionalismo.

Em matéria de desenho o olho sempre será melhor matemático do que a fórmula da geometria. O olho por sua vez emancipa o que o a fórmula aprisiona.

O desenho se principia no olho, pois o olho dirige o gesto da mão. As fórmulas geometrizantes deste modo arquitetônico de desenhar acabam por prender a plena visão das formas sob a regência da razão, então geometrizam tudo, iniciam o desenho já pelos quadrados, pelos cubos, retas e diagonais, para daí tentarem "lapidar" uma forma cuja emergirá à superfície do suporte já esvaziada da sua vida, uma vez não tendo sido vista sob seu pleno realismo. Depois terminam de maquiar seu cadáver com os sombreamentos obsessivos, fazendo das mãos não objetos provedores de vida, mas de máquinas impressoras.


... E porque, pois, sombrear e esfumar tudo?

O que se observa hoje nos desenhos hiper-realistas é uma tentativa de simular uma foto, isto seja, de lograr um "realismo" fotogênico.

Ora, porque um desenhista iria querer competir com as fotografias, se sua plástica material ( os efeitos de realismo promovidos pela matéria mesma do lápis) é algo mais raro e superior do que o mero registro fotográfico? Se há algo que a fotografia nunca irá capturar é a identidade de um traço. Os desenhos com intuito de buscar a realização do realismo, seja em estudos, seja em uma obra acabada, nunca necessitaram concorrer ao congelamento da luz das fotografias, tudo no desenho é vivo, pois a matéria do grafite, do carvão, dos crayons está lá respirando, vibrando, nos falando da mão que os realizaram.


O realismo per ipsum não se faz necessariamente pelo fotorrealismo assim chamado "hiper-realismo", mas se faz pela conjunção de elementos do material plástico sobre um suporte visando criar uma natureza estética cuja evoque o real, mas sem meramente replicá-lo, pois isto seria a criação de simulacros, não de obras; logo, quando traços, tracejados, esfumados, tons sobre tons visando o trabalho do lápis para construir o realismo, se reúnem sobre o papel, nele plastificam uma realidade típica de sua natureza, esta natureza inerente ao desenho estará inspirada na natureza mesma, aprofundando-lhe a sua percepção. Quando os elementos do desenho se harmonizam, quando esfumamos determinados detalhes, contornamos outros, aprofundamos sombras em dadas regiões para simplesmente sugerir a presença de matéria através de um tracejado ligeiro, em outras, estamos construindo um desenho rico, expressivo e portanto, realista. Se esfumamos tudo, na tentativa de tornar tudo "homogêneo" para a simulação do que vemos em uma foto, estamos fazendo perecer os elementos do desenho e por conseguinte, sua riqueza, sua força, seu realismo.


Se tomarmos os desenhos de Leonardo da Vinci, veremos o quanto ele os hachurava para transmitir a percepção de massa, peso e volume. Isto é, o senhor da técnica do esfumado não esfumava tudo. Mas poderiam me dizer: " Eram apenas estudos".

No que tange a característica de um estudo enquanto obra acabada, não abordarei aqui, uma vez tendo sondado este conceito em outro texto *, então tomemos outro artista, famoso por seu grande realismo inspirador de outros realistas, o pintor neoclassicista Dominique Ingres, a linha rafaeliana ( ou simplesmente classicista) de seus desenhos fazem-nos parecer não só realistas, mas harmoniosos, uma vez a linha usada por Ingres sendo usada para este fim, o de transmitir a sensação de beleza pela harmonia da linha; os corpos de seus retratados, por sua vez, ficam "inacabados" e sugeridos pela linha e por traços suaves, o que nos faz reparar, de imediato, uma espécie de "charme" ou mesmo estilo como sendo uma espécie de modismo de época a se cultivar por um gosto burguês, contudo, se formos pensar pela composição geral do desenho, olhando-os mais detidamente, a sensação de realismo está já ali ( no desenho com o rosto acabado e o corpo "sugerido"), uma vez que a linha que delimita a massa do corpo, mesmo que estando esvaziada de elementos de densidade ( como as hachuras) ainda assim nos dão alguma sensação de volume pelo modo como a linha é usada, e um corpo sugerido apenas por linhas e coroado por uma face bem sombreada por traços e esfumados faz nossos olhos se deterem melhor no semblante do retrato.














Desenho da cabeça de uma jovem mulher, por Leonardo Da Vinci.


























Ao lado, um retrato de Madame Baltrad, de 1836, por Dominique Ingres. Abaixo um desenho de Ingres, de 1816.








Assim Ingres nos brinda com seu realismo utópico, isto é, com a beleza de seus retratos harmoniosamente realistas. O realismo grosseiro, isto seja, o naturalismo radical surge já em uma época de afastamento dos conceitos de beleza utópica - mas ainda assim realista - por conta das ideias da literatura realista e naturalista cujas eram carregadas do pensamento materialista ( e uma boa carga de anti-romantismo), não obstante, o que irá diferenciar a utopia do belo do belo distópico será menos o tratamento dado às técnicas de desenho e pintura do que a herança intelectual dos artistas.


Munch se considerava um realista, suas influências eram de pintores realistas, herdeiro da escola de Christian Krohg, admirador da obra de Toulouse Lautrec: ambos pintores naturalistas, apesar do ultimo possuir uma abordagem inda mais heterogênea do que o primeiro, uma vez sendo impulsionado pelo movimento da vanguarda do século XIX. Mas seu pensamento o fez tocar sua obra de um modo tão dramático que tornou-se, assim, uma inspiração ao expressionismo das futuras vanguardas. Corot e Coubert, com efeito, eram herdeiros do tratamento romanticista da pintura, mas buscavam retratar as realidades da vida concreta, o que não impediu das nuances idealistas de Delacroix em permear suas obras de uma aura púdica. A origem do mundo de Courbet tenta ser impuro, tenta ser realista no sentido radical do termo, mas ainda assim é belo: são as coroas do realismo, nos legada por Da Vinci, que nos recusam a nos deixar, quando procuramos o belo, seja pelo pensamento temático realista ou romanticista.


O que Gustave Courbet pensava mostrar de impudico em sua pintura "A origem do mundo", arrancando o conceito do título de uma origem divina para uma origem humana, assim como trazendo o foco não para um semblante humano e sim para um "Ione", demonstrando assim sua intenção "realista" ( realista, aqui, no sentido daquilo que conceitualizou o movimento do realismo do qual Gustave Courbet era um símbolo vivo) ainda assim fazia transparecer, pelos contornos graciosos - apesar da pose relaxada - o idealismo renascentista que atravessou os séculos para matizar o sentido realista de Courbet da bela e ideal forma, de tal modo que não notamos exatamente um pensamento erótico ou desleixado ao lhe contemplar a pintura, mas somos remetidos ao sentido elevado da mãe dos homens e das provedoras de vida na terra. Isto é, a naturalidade com que a carne fêmea está nos representada, nos reforça o sentido daquilo que é puro por ser natural, e nos eleva, pelo naturalismo, à contemplação do que é belo pelo ideal do feminino enquanto receptáculo e fonte de criação, esta última sendo um ato belo da natureza, e por conseguinte, de Deus.


Delacroix olhava, por sua vez, Ingres ao avesso, mas a sua busca pela vida na obra através do exprimir da imagem é uma afirmação de Ingres: o aprofundamento da realidade e por conseguinte, do belo.


Os elementos do desenho, suas cargas materiais, tal como as da pintura, vão, portanto, modelando a obra, colocando peso em alguns pontos, leveza em outros, linhas definidas em algumas partes, esfumaçados aonde se deva atenuar - ou "borrar" - a matéria rígida em outras, dando harmonia ou drama, conforme a pretensão da percepção de realidade visada, para a realização da obra, isto seja, de seu realismo, de sua vida.


Por tanto, não se trata da fotogeneidade, ou do simulacro da fotografia, esfumar e esfumar para uma imagem morta, mas do realismo pleno de vida, da vida plena de realidade, feito logrado pelas cargas materiais da obra, e pela obra condensada de substancialidade.



















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